Joca


Anabela Kohlmann Ferrarini

Não conheci o Joca, não afaguei seu pelo dourado, não acarinhei suas orelhas macias. Não deixei que ele cheirasse minhas mãos, que pulasse sobre minhas pernas, fazendo festa. Soube dele, primeiro, que morreu sozinho, trancado numa caixa, no trajeto para sua nova casa. Depois, soube do imenso amor de seu tutor, João, por ele, e do duro golpe que foi, para o rapaz, a perda do amigo de quatro patas.
Joca embarcou no mesmo voo que João, mas no porão da aeronave, como se bagagem fosse. Deveriam se reencontrar em Sinop, Mato Grosso. Mas o Joca, um golden retriever de cinco anos, após um erro da empresa de transporte, que pertence à companhia aérea, foi parar em Fortaleza, Ceará, e, de lá, de volta a São Paulo. Um percurso que totalizou oito horas, quase quatro vezes mais do que o tempo esperado, visto que o veterinário estimou que o cão suportaria bem duas horas e meia de viagem. João chegou ao destino sem percalços e, não encontrando Joca, foi informado do ocorrido e voltou à cidade de origem, a fim de resgatar seu pet. Para seu desespero, foi confrontado com o corpo sem vida do companheiro de todo dia, que chegou para ele ainda filhote, com apenas três meses.
Não conheci o Joca, mas conheci a Luna. E tenho certeza que eles se parecem – como se parecem todos os pets que são amados por seus humanos. Luna, uma boxer de pelagem branca e caramelo, tinha olhos doces e uma lua crescente desenhada na brancura do pelo que contornava seu pescoço. Quando ingressou na nossa família, com 75 dias, era forte e vivaz, brincalhona e carinhosa, cheia de energia. Aposto um bicho de pelúcia e um chinelo roído que o Joca também era assim. Foi companheira amorosa de meus filhos mais velhos, enquanto cresciam e entravam na adolescência; brincou com a gurizada, nadou, jogou bola, correu. Chorou com o caçula, cada vez que ele, recém-nascido, abria o berreiro. Escondia-se debaixo do berço, querendo velar seu sono. Foi seu cavalinho, aguentou os puxões de orelha sem jamais rosnar, cheia de paciência com aquele ser humano pequenino. O Joca, com aquele olhar adorável, deve ter feito e vivido coisas semelhantes, conforme testemunham as fotografias que circulam pelas redes sociais.
Passou por muita coisa, a minha velhota babona. Aos dez anos, já parecia uma idosa, e sofria com um câncer. Aos poucos, os pelos brancos se multiplicaram por todo o corpo, os olhos se tornaram menos vivos, os dentes foram caindo, e a dificuldade para caminhar ficou cada dia maior. Mas nada mudou seu carinho, o jeito alegre com que balançava o rabinho ao ouvir nossas vozes. Ela foi valente, mas a doença venceu, como tantas vezes acontece, e seu coração deixou de bater. Foi valente, minha amiga de quatro patas, parceira de cafezinho com bolacha Maria. Foi valente, e eu sei que ela se despediu da vida feliz, porque foi feliz e nos fez felizes.
Mas e o Joca, tão bonito e amado, que não pôde envelhecer, que morreu lentamente, sufocado, confinado num espaço minúsculo? E o João, que viajou instantânea e repentinamente da expectativa de uma vida nova para aterrissar na tristeza de uma vida perdida? O que fazer com essa ruptura instalada, feito ferida aberta, na amizade desses dois? Não sei, João, não sei.
Todavia, sendo o cão uma espécie de anjo sem asas, dono de um nariz gelado e vocação para a alegria, suspeito que Joquinha percebeu que a coisa não andava bem, e que os homens e mulheres que o cercavam estavam desinteressados de seu bem-estar. E fez o que lhe era possível no momento: fechou os olhos e adormeceu, sonhando com maçãs vermelhas e suculentas, brincadeiras ao ar livre, cosquinhas na barriga, a segurança do abraço do seu tutor. A certa altura, encontrou uma turma acolhedora, formada por cães, calopsitas, gatos, coelhos, tartarugas, papagaios, que o convidaram para correr, rolar na grama e lagartear ao sol. E ele foi ficando, até não saber mais como voltar.
Minha Luna está por lá também, nesse céu dos bichinhos de estimação, onde não existe fome, dor, sede, medo. Lá o horizonte não tem fim, não faz calor, nem frio. Tudo ao redor é ameno, pacífico, como deve ser. São Francisco toma conta de todos, com ternura. Nas minhas retinas, posso ver o Joca, travesso e contente, o longo rabo riscando a paisagem, e a Luna ao seu lado, mostrando a ele seu novo lar. É certo que se tornarão bons amigos!
A companhia aérea, não resta dúvida, cometeu um gol contra de partir o coração. Mas o Joca, minha gente, ah, o Joca! Esse foi artilheiro no jogo da vida, e fez um gol de placa quando “adotou” o João. E o João empatou grandemente o jogo, que retribuição de amor é mais amor.
Lembro bem daquele dia, 11 anos atrás, quando meu filho, ao acariciar, com doçura, a companheira já sem vida, murmurou:
- Tá tudo bem, Luna. Pode ir.
E espero que o João, amigão do Joca, possa encontrar justiça e paz, e também dizer, finalmente:
- Tá tudo bem, Joca. Pode ir.

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Anabela Kohlmann Ferrarini

E-mail: anabelaferrarini@hotmail.com

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