Gavião Belo*


Anabela Kohlmann Ferrarini

Passavam por Poconé, cidade conhecida como Portal do Pantanal mato-grossense. As crianças mais velhas cantavam, as pequenas dormiam embaladas pelo trepidar dos carros que andavam em baixa velocidade na estrada de chão batido, a selvagem e inóspita Transpantaneira, que se estende até Porto Jofre. Um enorme São Francisco de Assis, esculpido em madeira, se erguia às margens da rodovia recepcionando os viajantes, abençoando e protegendo a natureza.
Em breve chegariam à Pousada Amarela e poderiam admirar de perto a fauna e a flora da região. Araras, jacarés, lagartos, capivaras e onças, talvez. Um dos adultos imitou o animal, num arremedo de rosnado feroz. A gurizada riu, fingindo pavor. Esperavam mesmo era avistar essa criatura magnífica.
Percorreram longos trechos de estrada ladeados por uma grama rasteira, alguns ipês, mandacarus, aroeiras. De vez em quando, iguanas verdes atravessavam de um lado a outro, numa corrida frenética. Passar pelas pontes de madeira que se multiplicavam por toda a extensão da rodovia exigia uma certa perícia do motorista e fé em Deus Pai. Na primeira, um frio percorreu a espinha de todos e as tábuas rangeram sob os pneus. Lá embaixo, os jacarés se esticavam preguiçosamente, parecendo não se interessar pelos automóveis que se equilibravam na estrutura precária. Nas próximas travessias, já ninguém prestava atenção, confiantes no pai ao volante.
Chegaram ao destino exaustos e famintos, e um farto café da tarde os esperava. Pães caseiros, geleias, frutas, sucos de caju, manga e acerola colhidas no pomar. Experimentaram o cremoso bolinho de arroz cuiabano, quitute típico da região. Sentaram-se em poltronas ou deitaram-se em redes na ampla varanda, desfrutando do anoitecer, ouvindo os sons da mata ao redor, contando as estrelas que despontavam na vastidão celeste. Saciados de alimento e de beleza, se entregaram ao sono, pensando nos passeios do dia seguinte.
Tão logo o sol despertou, tomaram o café da manhã e foram ao encontro de Seu Manuel, o guia que os levaria para um passeio de canoa no Rio Cuiabá. À beira da água, o homem os esperava. Era impossível dizer sua idade, era baixo, braços e pernas fortes, rosto vincado, um cuiabano de tchapa e cruz.
Embarcaram destemidos nas canoas, adultos e crianças, sem pensar nos perigos, sem coletes salva-vidas, sem considerar o peso que cada embarcação poderia suportar. Interessava somente a aventura. A canoa arrastava-se lentamente, até que Seu Manuel a parou, sendo seguido pelos demais canoeiros.
Então, com aquele sotaque cuiabano inconfundível e impossível de ser traduzido na escrita, Seu Manuel gritou, erguendo o braço direito:
– Gavião Belo! Gavião Belo! Tchu, tchu, tchu!
Ficaram todos em silêncio, mirando o céu azul, na mesma direção que os olhos do pantaneiro apontavam. Nada. De novo o homem gritou e, dessa vez, surgiu, ao longe, um pequeno ponto entre as nuvens, que foi crescendo, até permitir avistar asas subindo e descendo, graciosas. A ave, medindo uns cinquenta centímetros de comprimento e mais de um metro de envergadura, era, de fato, muito bonita, e pousou com precisão no antebraço de Seu Manuel, as garras o envolvendo quase por inteiro. O corpo da cor de ferrugem, a cabeça branca, o peito matizado de tons mais claros e a cauda preta formavam um conjunto imponente. Seu Manuel explicou que aquele era seu amigo Belo, da espécie gavião-belo. A despeito da falta de originalidade no nome de batismo, a amizade entre pássaro e ser humano era cristalina. Ele se abaixou devagar e retirou do samburá um peixe, que Belo devorou com rapidez.
Afagando a cabeça do animal, Seu Manuel foi contando uma lenda muito antiga, sobre um gavião que se tornava amigo das crianças e as levava para voar pelo Pantanal. Bom contador de causos, o peão fascinava as crianças; e o fascínio das crianças encantava os adultos. Meninos e meninas diziam que não teriam medo de voar nas asas do Belo.
Um movimento na água fez todos virarem para o lado e Belo levantar voo. Seu Manuel pegou o remo e deu um berro: “Xô, Pelé!”. Apavorados, constataram que Pelé era um jacaré que se aproximara da embarcação enquanto estavam distraídos com o gavião. Só foi embora depois que vários peixes foram lançados à água, atraindo sua atenção. Trêmulos e excitados, riram do próprio susto, agarrados às laterais do barquinho, na viagem de volta ao ponto de embarque, acompanhados pelo gavião, que dava rasantes sobre eles.
Nos dias seguintes, o Gavião Belo ficava sempre por perto das crianças e relutava em deixá-las quando escutava o chamado de Seu Manuel que, por certo, repetia suas histórias a outros viajantes incautos. Partia num voo baixo e algum tempo depois voltava, pousando nos galhos retorcidos de uma árvore ao centro do imenso quintal gramado onde meninos e meninas brincavam. De vez em quando, um pai sentia falta de alguém e perguntava onde estava seu filho. “Foi dar um passeio com o Belo, tio!”. O adulto revirava os olhos e saía em busca da criança.
Procura daqui, procura dali, ninguém sabia onde estava o moleque. De repente, aparecia, afogueado, os cabelos como que penteados por uma ventania. Os pais diziam para não irem muito longe, que era perigoso ficar correndo por ali.
Isso foi se repetindo sem que pais e mães, tios e tias parassem para pensar a respeito. As crianças, por sua vez, estavam cada vez mais se assemelhando àquela terra: corriam livres, descalças, cabelos soltos, mãos sujas, bocas lambuzadas das frutas comidas direto do pé. E o Belo pairava por ali, saboreando os pequenos cubos de carne que as crianças apanhavam na cozinha para ele.
No dia da partida, Tininha, a caçula da turma, desapareceu. “Cadê essa menina?”, perguntou o pai, apressado, querendo pegar logo a estrada. As crianças se olharam, travessas, e nem se deram ao trabalho de explicar, afinal, nenhum dos adultos acreditava no que elas haviam contado dia após dia: as paisagens que haviam visto, a revoada de tuiuius que presenciaram, os rios e riachos que serpenteavam por todo o Pantanal, os ipês floridos que salpicavam o lugar.
Quando finalmente Tininha surgiu, sorridente, a mãe a abraçou:
- Menina levada! É arriscado demais se afastar assim, uma onça pode te pegar!
Tininha, fugindo do abraço sufocante, respondeu, com paciência:
- Tem perigo não, mãe. No céu não tem onça.

* Este conto integra a coletânea “Contos de viagem”, organizada por Marcelo Spalding e publicada pela Editora Metamorfose (RS), em 2023.

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Anabela Kohlmann Ferrarini

E-mail: anabelaferrarini@hotmail.com

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