TEM FÉ, HOMEM DE DEUS: um conto de Natal


Anabela Kohlmann Ferrarini

Vinham os dois pela estrada, atravessando a noite escura como breu. O velho fusca já reclamava a longa viagem e o combustível estava no fim. José se atormentava, deveriam ter viajado de ônibus, com hora certa para partir e para chegar. Mas pensara que Maria viajaria mais tranquila e confortável, acomodada no banco traseiro, esticando as pernas quando sentisse vontade, recostando a pesada barriga aos travesseiros macios, perfumados de alecrim.
Agora estavam ali, ainda distantes de Belém do Paraíso, e há muito tempo não viam sequer um posto de gasolina ou pousada de beira de estrada. Maria dormia, sossegada, a mão sobre o ventre, um sorriso leve a lhe enfeitar o rosto. Sem abrir os olhos, ela murmurou:
- Tudo dará certo, José. Tem fé, homem de Deus! - ela costumava fazer isso, adivinhar-lhe os pensamentos e conversar com ele, mesmo quando parecia dormir.
Fé ele tinha. Muita. O que não tinham era gasolina! O carro ofegou, sacolejou, perdeu potência. José conseguiu estacionar no acostamento, e Maria despertou. Desceram do automóvel e a brisa gelada os envolveu. Ele colocou um cobertor sobre os ombros dela, e, sob a lua, seus olhares se encontraram.
- Dá-me tua mão, José.
Ele assim o fez. Aquelas mãos tão bondosas, mãos de sovar o trigo e assar o pão, de servir o vinho e afagar seus cabelos ao fim de um dia de trabalho, envolveram as suas e as levaram ao encontro do Menino. Suas mãos rudes, mãos de carpinteiro, espalmadas sobre o ventre redondo de Maria, se encheram de luz, e seu peito inundou-se de esperança e serenidade.
Com os olhos acostumados à escuridão, perceberam ao longe uma luminosidade, e o vento, tal qual mensageiro do céu, fez com que ouvissem vozes distantes, risos, música.
Caminharam um pouco, porém, Maria cansava-se facilmente. Sentou-se em um tronco caído, e um cão imenso, que surgira entre os arbustos, lambeu-lhe as mãos.
- Vamos, amigo. De onde vieste? Precisamos de ajuda!
No mesmo instante, o cão lançou-se na noite, latindo e uivando, num chamado urgente. Passou-se um tempo e ouviram passos e vozes curiosas:
- O que há, Chicão, que aconteceu? Quer nos mostrar alguma coisa?
- Aqui! – gritou José! – Estamos aqui!
Rostos jovens e sorridentes se aproximaram, um bando alegre e ruidoso de rapazes e moças com as faces pintadas e pulseiras neon que cintilavam à luz das lanternas.
- Ângelo, vai buscar o jumentinho! – disse um deles, sorrindo. E, dirigindo-se a José, exclamou:
- Cara, você vai ser papai!
José suspirou, aliviado, mas não tanto. O que saberiam da vida e dos mistérios do nascimento aquelas pessoas que estavam a engatinhar na existência adulta? Voltou-se para Maria e a viu cercada pelas meninas, o rosto doce cheio de amor. Seus olhos se encontraram e ele percebeu os lábios da esposa se moverem:
- Tem fé, homem de Deus!
Bento, o jumentinho, era surpreendentemente célere, e carregou Maria até o acampamento iluminado com rapidez. Havia muitas barracas e a música enchia a noite, ora batidas ritmadas, quase o tum-tum-tum do coração, ora melodiosas ondas de fazer sonhar. José, com suas calças jeans, camiseta marrom, cabelos longos e barba por fazer, e Maria, com seu vestido vermelho longo e o cobertor azul sobre os ombros, em tudo se assemelhavam às pessoas ao seu redor.
Alguém cedeu uma barraca, e, num instante, mãos generosas ajudaram Maria a se deitar, trançaram seus cabelos com flores, refrescaram sua testa com um pano úmido, disseram palavras de encorajamento.
- Está frio, Ângelo, a criança precisa estar aquecida quando nascer! – disse José.
Ninguém tinha cobertores, sequer pensaram nisso, preocupados apenas com a música e a festa, a dança e a alegria. Mas havia ali a Mimosa, vaquinha de estimação, que foi trazida para perto da barraca, assim como Bento, Chicão, e outros cães que por ali vagavam. O calor que emanava dos corpos dos animais foi aquecendo o ambiente, e José, mais uma vez, sossegou.
Ouviram gritos de admiração e euforia, e saíram para ver o que acontecia. Todos olhavam para o alto. No manto da noite, uma magnífica estrela brilhava sobre a barraca. Ficaram ali por um tempo, encantados, até ouvirem um choro vigoroso inaugurando a vida, e José correu para Maria. Encontrou-a com o filho nos braços, cansada e feliz. Isabel, uma jovem franzina usando shorts amarelos e bata branca, bordada de flores coloridas, pegou gentilmente o Menino, e o levou até o pai. Com o filho em seu regaço, e Maria adormecida e amparada, José sorriu.
Trouxeram uma grande almofada, revestiram-na com uma tapeçaria macia, e ali deitaram o Menino. Maria e José se colocaram ao seu lado, e chamaram todos que estavam ali para que se achegassem e desfrutassem da bênção do nascimento de seu filho, a quem chamariam Jesus.
- Que irado, mano! Esse carinha vai mudar o mundo!
Pela manhã, Ângelo avisou que o fusca estava abastecido, haviam buscado gasolina num posto alguns quilômetros adiante. Enquanto Maria amamentava o pequenino, José foi até a estrada, pegar o carro, acompanhado de Ângelo.
- O que vocês fazem aqui, no meio do nada, Ângelo?
- É uma festa pela vida e para a vida, amigo José. Uma rave! E que bom que a gente está aqui, não é? Deus escreve certo por linhas certas, era o que minha avó dizia. Não há linhas tortas com Deus. Linha torta é coisa do tinhoso, segundo ela.
O fusca estacionou diante da barraca, de onde saiu Maria, com um véu branco repleto de estrelas cintilantes sobre os cabelos, uma coroa de flores sobre a cabeça, que as moças lhe haviam dado. Jesus dormia placidamente, aquecido pelo cobertor azul, nos braços da Mãe. Pouco a pouco, o acampamento despertou e uma multidão colorida os cercou, desejando felicidade numa profusão de idiomas confusa e festiva. Havia gente de todos os lugares do mundo, e eles receberam presentes para o menino: pingentes de ouro, incensos perfumados, até mesmo óleo de mirra, para aromatizar o ambiente. Foram embora com o sol já despontado no horizonte.
Pelo retrovisor, José encontrou o olhar de Maria, que parecia triste. Naqueles olhos havia a imensidão do tempo, o princípio da eternidade, e ele compreendeu que nada devia dizer. Ela volveu os olhos para Jesus, e mesmo o semblante inocente da criança carregava certa tristeza. Mãe e filho compartilhavam algo que José apenas imaginava. E ele repetiu para si: “Tem fé, homem de Deus”.
Horas depois, pararam em um restaurante para descansar. A cidade estava silenciosa. Por todo lado, grupos de pessoas fitavam as telas das TVs e dos celulares, incrédulos. Assustados, também eles se concentraram no apresentador de voz trêmula, perplexo com as imagens e informações transmitidas.
Houvera um massacre numa rave, numa cidade distante algumas centenas de quilômetros dali. O bando de Herodes chegara invadindo tudo, atirando a esmo, ziguezagueando por entre as barracas. Ninguém escapara.
A mão rude de José apertou com força a mão de Maria, cujo olhar vacilara por um instante, até pousar sobre o filho. José só conseguia pensar nas linhas tortas, no zigue-zague cruel. Maria, adivinhando-lhe a dor, repetiu:
- Tem fé, homem de Deus!

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Anabela Kohlmann Ferrarini

E-mail: anabelaferrarini@hotmail.com

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