Maria Dinorah, eu e o território da infância (uma homenagem aos 100 anos da escritora)


Anabela Kohlmann Ferrarini

Embora O território da infância seja o título de um dos livros de Maria Dinorah Luz do Prado, eu o escrevo assim, em letras minúsculas, para nomear o universo criado por ela e no qual me abriguei tantas e tantas vezes, para rir, chorar, sonhar. Nesse território sem fronteiras, qualquer criança era bem-vinda. Bastava abrir um livro e lá vinha ela, com seu sorriso, nos receber e conduzir com suas mãos gentis por florestas verdinhas, oceanos cristalinos, céus salpicados de nuvens e estrelas. Convidava-nos ao quintal de casa e ao horizonte, o perto e o longe belos na mesma medida.
Guardo comigo, como tesouros resgatados desse território encantado, quatro livros da Coleção Pirulin: O catavento, O macaco preguiçoso, O coelho Dim-dim e A caranguejola do Zeca, todos eles recheados de histórias para além daquela que lhes dá o título. O volume 1, Pinto Verde, desapareceu. Tenho quase certeza que ele anda escondido no galinheiro do Seu Manuel, sob as asas da Ruiva. Exemplares bonitos, com a capa dura, publicados entre os anos de 1974 e 1977. E também O território da infância, brochura, onde, ao final, há uma respeitosa informação ao leitor: “Acabou de imprimir-se na Tipografia e Editora La Salle, Canoas, RS, em agosto de 1976, para Editora Bels S.A.”. O tempo andava mais devagar então. Como o tempo que pinga, lenta e docemente, enquanto releio alguns desses pequenos contos. Que espere o trabalho: estou ocupada sendo criança, festejando o aniversário da minha amiga de óculos enormes, cabelos arrumados, perfume de avó.
E qual foi minha surpresa ao encontrar, nas páginas do Território, anotações feitas para adaptar O tricô de Lili como peça teatral! A cena se descortinou como por magia, e lá estava eu na sala de aula do Colégio Rondon, na turma da Professora Madalena, ensaiando com os colegas o texto escolhido. Estávamos na quarta série, guris e gurias com 10, 11 anos de idade, desafiados a transformar em texto teatral uma história preferida. Que experiência maravilhosa: a da infância e a da maturidade relembrando essa infância.
Conheci Maria Dinorah na Feira do Livro de Porto Alegre, talvez em 1975. Depois, ela esteve na escola, para conversar com as crianças. Que algazarra boa, que delícia estar com um ser humano adulto capaz de escutar afetuosamente as crianças e respeitar suas infâncias! Naquele dia, marcamos um encontro:
- Te espero na Feira do Livro, em novembro, na Praça da Alfândega!
- E se eu não puder ir?
- Aí tu me ligas, para conversarmos.
E do lado do autógrafo, da letra rabiscada às pressas, ela anotou o seu número de telefone: 258754. Senti nuvens sob meus pés. Ela era assim – ou assim a minha memória a eternizou – acolhedora, amorosa, serena. Durante alguns anos eu mantive minha palavra e a visitei nas alamedas da Feira, usando as economias da mesada para comprar os livros queridos. Certa vez, liguei, e fiz uma entrevista, três ou quatro perguntas, respondidas com atenção.
Maria Dinorah tornou maior o meu mundo. As epígrafes de seus contos me levaram a explorar a Biblioteca da escola em busca de Pablo Neruda, Vinicius de Moraes, Guilherme de Almeida, Ledo Ivo, Carlos Nejar, Lila Ripoll, João Cabral de Melo Neto e ele, Mario Quintana, meu poeta mais querido. Que potência emana dos livros, das palavras, das ideias, dessa tessitura que enreda a vida e a literatura, pelas mãos dessa talentosa escritora.
Quintana, ao escrever sobre as histórias da amiga, disse: “Portanto, Maria Dinorah, não vou dizer que fiquei preso às suas estórias: pelo contrário, elas me libertaram. Não é acaso essa a função da poesia?”. Sabia das coisas, o Mario. E eu, que ando por aí, escrevendo, tecendo palavras, querendo ser livre, agradeço a Maria Dinorah, cuja Luz iluminou minha infância, no Prado verdejante que se estende diante de quem ousa habitar, sem medo de ser feliz, o território da infância.
Oxalá eu consiga, como ela, dar função à poesia!

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Anabela Kohlmann Ferrarini

E-mail: anabelaferrarini@hotmail.com

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