O velho na praça vazia


Anabela Kohlmann Ferrarini

Sob as nuvens cor de chumbo, o velho Papa Francisco atravessa sozinho a imensa Praça de São Pedro.
Chove mansamente, como se o céu cinzento chorasse com o mundo o lamento da saudade e da dor, do medo e da incerteza. Não se vê a abundância de flores, flâmulas ou faixas benfazejas, que colorem a Praça todos os dias. Há flores somente diante da Virgem e do Menino, traço de cor e perfume, em honra à Estrela do Mar, no sombrio entardecer.
Vestido de branco, assim como brancos são seus cabelos, o velho caminha, determinado, embora seus passos sejam claudicantes, as dores no quadril tornam o caminhar um exercício de resistência. Mas a fragilidade da velhice se dobra à solidez do espírito.
Na praça vazia retumba o silêncio, mais alto, mais claro e mais forte do que se uma multidão ali estivesse, a rezar e a cantar.
A praça vazia é terra devastada, espelho do mundo em agonia. O velho que a atravessa e sobe as escadas para falar ao mundo, é o oposto disso. Seu coração é território abençoado, voz que se ergue contra a desesperança e a negação.
A voz do velho ecoa, inicialmente, ofegante, mas depois, firme e doce, em favor da vida, sempre da vida. Convida-nos a segurar nas mãos de Jesus e enfrentar a tempestade. Lembra-nos de que a avidez do lucro e a louca pressa da vida nos anestesiaram e nos tornaram incapazes de agir contra as injustiças ou de ouvir o grito dos pobres e do nosso planeta adoecido. “Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente.” A humanidade adoeceu a Terra – e adoeceu a si mesa.
Vejam e ouçam todos: um velho, do alto de seus longos anos de vida, nos mostra a força que vem da madura existência.
Que não nos pesem nossos velhos e que não sejam vistos como massa dispensável, apenas porque seus corpos já não têm o vigor da juventude.
Que não os isolemos em abandono, mas sim em resguardo cercado de amor.
Que tenhamos a certeza, sobretudo, de que nossos velhos são nossa história e nossa origem, e que é uma indignidade dizer, como se fosse insignificante, que somente os velhos morrem vitimados pela pandemia.
Ouçamos o velho Papa, a pregar aos corações vazios.

* 27 de março de 2020, O Papa Francisco reza sozinho diante da praça de São Pedro vazia e concede a bênção "Urbi et Orbi" (à cidade e ao mundo) e a indulgência plenária ao mundo, pela pandemia de coronavírus.

In: A crônica poesia da vida, Editora Metamorfose, 2024

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Anabela Kohlmann Ferrarini

E-mail: anabelaferrarini@hotmail.com

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