A bronca (ou a sina da revisora)*


Anabela Kohlmann Ferrarini

Terceiro ou quarto encontro da Oficina Mosaico Santa Sede 2024, numa segunda-feira de outubro. Um olho na tela, outro na porta, vejo meu filho irromper casa adentro, ruidoso como só os adolescentes sabem ser. Faço sinal para que fale baixo; de nada adiantou o recado prévio, pedindo moderação! Ele joga a mochila na cama e fica para lá e para cá: pega um copo de água, faz um sanduíche, brinca com a gata. E me lança uns olhares esquisitos. Deve estar estranhando a mãe a tagarelar com os colegas cronistas.
Conversa boa, crônicas bonitas lidas pelas próprias autoras – sim, nossa turma é prioritariamente feminina! Rubem é nosso professor e valente representante do gênero oposto. Finalizada a leitura de uma crônica, ele se põe a falar sobre suas impressões e, como de costume, vai corrigindo no original aquilo que é necessário, fazendo acréscimos ou – Deus nos defenda! – cortes no texto. Feitas as considerações do mestre, começamos nós, cronistas-cursistas, a dar nossos pitacos. Meu filho chegou quando eu estava a indicar algo sobre pontuação e concordância:
- Na linha 35 você usou o pronome indevido, o correto é “tu”. Também, na linha 28, tem vírgulas sobrando e faltando.
Abro a boca para falar sobre um adjetivo mal utilizado e, antes que eu pudesse fazê-lo, o guri resmunga, parado diante de mim, atrás da tela do computador:
- Cara... Mãe, tu tá parecendo aqueles CDF que sentam na primeira fila, na frente do professor!
Surpresa e meio envergonhada, percebo que os rostos no monitor permanecem serenos. Ótimo, não ouviram o destempero do moleque. Ainda assim, resolvo me explicar e pedir desculpas. São ossos do ofício, sabem? A revisora em mim nunca descansa. De vez em quando, me pego deixando escapar a beleza de um conto ou crônica porque há erros gramaticais insuportáveis, como “a ponta de um torturante band aid no calcanhar”. Só consigo pensar em arrancar o curativo mal ajambrado e corrigir o equívoco. Somente assim a paz volta a reinar.
Sou revisora de textos acadêmicos há mais de vinte anos e de livros há pouco mais de dois. Contudo, puxando pela memória, comecei minha sina lá nos idos de 1977, como auxiliar da professora Madalena. Com a Bic vermelha em punho, corrigia os ditados da turma. Mas a barbaridade começou mesmo no Dia dos Namorados. Na volta do recreio, encontrei um bilhete dentro do meu caderno. Dizia: “anabela, tu aceita ser minha namorada! sou o Sílvio, que centa perto da janela”. Assim, desse jeitinho. Não tive dúvida. Saquei a Bic, pintei de vermelho o bilhete, acrescentei um NÃO em letras maiúsculas, o devolvi e fiz sangrar o coração do Sílvio, o mais acanhado dos meninos da Turma 41. Nunca mais falou comigo, o Sílvio, e olhem que estudamos juntos até a 8ª série. E eu aprendi a lição, jamais usei meu saber mais para machucar quem sabe menos. Então, se às vezes me excedo, é entusiasmo pela Língua Portuguesa e desejo de contribuir com a beleza da escrita.
Se por ofício sou revisora, por vocação venho me tornando escritora. Essa minha dupla cidadania no mundo das palavras exerce um efeito colateral em algumas pessoas com quem me relaciono, nesses tempos em que muito se escreve – haja caracteres no Instagram e mensagens no WhatsApp! Tenho uma amiga que já começa se desculpando pelos erros de ortografia, outra, vai logo colocando a culpa no corretor, que de corretor não tem nada, só serve para fazer o vivente passar vergonha. Outro, ainda, manda uma figurinha de bom dia e grava áudios. Assim, diz ele, não corre o risco de assassinar o Português. Isso me espanta. Eu nunca, nunquinha, corrigi publicamente qualquer pessoa no uso desses suportes textuais. Quando o faço, entro em contato direto e explico, com delicadeza, o que observei.
A sonora bronca me atingiu. Primeiro, porque eu era, sim, a guria sentada na primeira fila, de frente para a professora. Segundo, porque, mesmo sendo essa guria na infância, na adolescência eu fazia parte da turma do fundão. E o que sabia de Português, desconhecia de Matemática, Física e Química. Minhas notas vinham todas desenhadas em vermelho.
Não sei tudo. Ninguém sabe. Lapidei meu fazer ao longo dos anos e, quando meus olhos insistem em dar valor mais a um erro bobo do que ao todo, faço uma revisão nessa mirada, emendando a rota.
Ih, olha lá! A legenda do noticiário anunciou que o policial agiu por extinto. Valha-me, Nossa Senhora dos Revisores, que sina! Que sina!

*In: Santa Sede, 15 anos de crônicas de botequim: relatos crônicos de quem fez (e faz) parte dessa mesa. Organização: Giancarlo Carvalho, Rubem Penz, Maria Lúcia Meireles. Porto Alegre, RS: Santa Sede, 2025, p. 115-117.

voltar

Anabela Kohlmann Ferrarini

E-mail: anabelaferrarini@hotmail.com

Clique aqui para seguir este escritor


Site desenvolvido pela Editora Metamorfose