Carnaval literário*


Anabela Kohlmann Ferrarini

Sábado de carnaval, a escola de samba Doce de Letra entra na avenida, máscaras de lantejoulas deixam entrever os olhos das passistas, que levam nas mãos, como adereços, livros diversos. O carro abre-alas reproduz, com devoção, uma biblioteca, a porta-bandeira carrega o estandarte da leitura.
Reverbera um samba-enredo todo diferente, com Orgulho, sem Preconceito, acolhendo quem quiser sambar e cantar. As irmãs Bennet puxam o cordão, enroscadas em longos vestidos e serpentinas, para horror da mãe, que abana o leque diante do rosto, em meio a frívolas palpitações. O Senhor Darcy prostra-se a um canto, que não lhe agrada tanto assim dançar – mas ele se pega sorrindo, ao ver sua Elizabeth a girar, coberta de estrelas e confetes.
Madame Bovary vai passando feito colombina, sorrindo ora para Charles, seu triste e pálido pierrô, ora para um sedutor e alegre arlequim. Seria Rodolphe ou Leon? Sua longa cabeleira negra esvoaça enquanto ela rodopia, eternamente insatisfeita, à espera de um amor desmedido. O vestido rodado pincela azuis pelo salão. Como num sonho, ela sabe de seu inevitável e trágico fim. Pois que seja, nada mais importa senão a música que vibra em seu coração!
Mas qual! Num repente adentra ao baile o Analista de Bagé, o psicanalista bagual, acompanhado de Lindaura, flor de formosura, sua sagaz secretária. De braços dados, vão passando uma cuia, de mão e mão, servindo um mate, observando a reação de cada vivente. E o médico, travestido de folião, pensa: “Mas isto não é um fandango, é um hospício... É cada um! Precisam todos de uma terapia à base do joelhaço. Em dois tempos estariam curados, garanto!”. Gabriela surge adiante e sopra um beijo com sabor de cravo e canela e o faz perder o rebolado, tão derretido pela morena quanto Nacib Saad.
O Analista vê passar por entre as alas um xale de longas franjas pretas e coloridas flores. Em meio aos festejos, Frida desfila suas dores sem pudor – que carnaval é a festa da carne, do corpo que busca o descanso, o perdão e o gozo da festa de Momo, esse declarado armistício, em que a alma se joga ao delírio e ao esquecimento. Festa da perdição.
Perdido mesmo está Bentinho, náufrago dos olhos de ressaca, que a todos pergunta:
– Viste Capitu?
Ninguém a viu, nem mesmo a menininha de cabelos teimosamente lisos, e boca vermelha, que observa, com espanto, a alegria dos outros. Traja pétalas de papel crepom cor-de-rosa e atravessa a avenida como quem atravessa a vida, querendo ser outra que não ela mesma, vestir qualquer fantasia ou máscara que encubra o que se esconde sob sua face. Mergulhada em melancolia, Clarice desabrocha rosa-flor-mulherzinha, regada de confete e purpurina!
Pela porta vão entrando, num balanço tímido e encarquilhado, Tuahir e Muidinga, descalços e poeirentos. Sacodem os corpos magros, como sonâmbulos, abismaravilhados diante de tanta luz e cor, música e alegria. E a dor dentro deles se apequena e se expande, conforme o toque do pandeiro ou o ressoar do tambor. Muindinga arrasta os pés ao ritmo do samba, estende as mãos esquálidas, a chamar Kindzu e Surendra, grita a eles que venham, aqui se pode ser feliz de faz-de-conta.
Dançam e cantam. Requebram e riem, inconsequentes, pra tudo se acabar na quarta-feira.
Já vai alta a madrugada, um galo canta, e mais outro, e outro ainda. E acaba-se tudo, apagam-se as luzes, emudecem as baterias, repousam os livros nas estantes, descansa o altivo estandarte. “Nos corações, saudades e cinzas foi o que restou”, canta Vinicius, e ainda um fio de esperança, uma promessa de que a alegria vai fazer suas malas e voltar sem demora, seja lá de onde ela andar escondida.

*In: FERRARINI, Anabela Rute Kohlmann. A crônica poesia da vida. Porto Alegre, RS: Metamorfose, 2024.

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Anabela Kohlmann Ferrarini

E-mail: anabelaferrarini@hotmail.com

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